Encenações

sábado, 28 de maio de 2011

O Ator na aula de teatro.

Lá estava ele: roteiro do espetáculo na cabeça, corpo aquecido, prestes a abrir os olhos e fazer sentir na pele o calor que emana do público. Pronto para estrear mais um novo trabalho. O lugar da encenação estava lotado, todas as vagas oferecidas estavam preenchidas. Muito entusiasmado, o ator, em um lapso de insensatez e prazer, lança-se em mergulho profundo buscando o contato com um território até então desconhecido: aulas de teatro para crianças entre dez e doze anos.
A maquiagem na verdade é um roteiro de aula. O corpo aquecido é provocado pelo sol de meio dia e pela exaustiva e longa caminhada percorrida do ponto de ônibus até a escola. O espaço da encenação é na verdade o pátio da escola, que está vivo, com a presença de muitas crianças pulsantes! Pulsam com a força e a algazarra de uma charanga carnavalesca. As pernas do ator passam a bambear e o coração a bater na cadência dos saltos das crianças, que libertas, brincam no pátio, que para elas representa o lugar de serem livres. A sala de aula de teatro é o lugar de exercitar a liberdade criativa, de potencializar na criança o censo de seriedade com fundo de brincadeira e reforçar no seu fazer, o encanto de transformar um cabo de vassoura em espada, um lençol em castelo medieval e uma carteira em um dragão de sete cabeças.
O ator então, movido pela dinâmica das crianças no pátio, redescobriu o seu fazer como professor e como artista. Resolveu então, abandonar o roteiro preliminar da aula e instaurou-se na brincadeira de ser outras pessoas e de estar em outros lugares. Com isso embarcou naquele pátio, junto com seus alunos (que não tem nada de seres sem luz, como sugestiona a palavra derivada do grego) para uma viagem com destino a uma floresta fria, cheia de soldados prontos para atacar na guerra, e que, como num passe de mágica, transportam-se para a barriga de uma baleia como um monte de soldadinhos de chumbo ávidos por suas enamoradas. E juntos eles rasgaram a barriga da baleia com um grande e fedorento “peido azul” que fez todos desmaiarem!
Em meio a jogos tradicionais e vôos sobre o imaginário coletivo sem fronteiras da criança a aula teve seu fim e com ela os desafios de um educador de teatro para a infância. Como organizar uma cena que não purgue o encanto da criança? Como não transformar a beleza de corpos ativos pelo jogo dramático em robozinhos estáticos que marcam o espaço com falas programadas e roupinhas coloridas? Como esclarecer para a criança, que tem entre 10 e 11 anos, a diferença entre brincar de ser personagem, de criar textos, de transformar e instaurar espaços atuação? Creio que com o decorrer do processo muitas respostas surgirão. A primeira veio como a mais valiosa das descobertas: um professor de teatro para crianças tem de deixar de lado as receitas prontas, os vícios, tem de serem capazes de resignificar momentos lúdicos suscitando os elementos que compõem o teatro: corpo, espaço e ação... Tem de estar aberto a revolucionária forma de enxergar o mundo que a criança tem. Estar atento ao contexto que esses pequenos indivíduos estão inseridos e acima de tudo, não devem ter medo de arriscar sem pudor! O universo da criança contemporânea é recheado de encanto e também de violência. 

Este Ator-Educador que vos escreve, está atuando em um projeto com crianças da Escola Municipal Professor Homero de Oliveira Dantas no município de Parnamirim/RN, matriculadas no 5º ano do ensino formal. Moradores de uma periferia distante do centro e das elites capitais natalenses. Crianças que convivem com um formato de sociedade que não está ainda emoldurado em um falso escudo segurança. Elas estão brincando nas ruas, descobrindo novas experiências, se arriscando, entendendo (ao modo delas) que para ser  gente crescida nesta sociedade é preciso ter coragem de subir na árvore para chupar manga, de ficar descalço para sujar o pé, de arranhar o joelho de uma queda, de brigar na rua, de se apaixonar pela menina ou menino mais belo da escola e assim guardar no corpo cicatrizes, que quando adulta, a fará ter memórias físicas e afetivas, leves ou pesadas. Por isso caríssimos colegas de teatro.  Não devemos esquecer que somos fruto de nossas memórias e é com elas que faremos a diferença em nosso fazer artístico e educativo.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

"Salta na roda" ou um caminho criativo.

Estava ali parado diante da calçada observando o vai e vem das pessoas no centro da cidade. O dia estava lindo e o sol muito quente. Minha cabeça explodindo de dor e meus olhos tentantando filtrar aquela algazarra de sons e cores. Em meio a esse turbilhão estava eu pensando nos mecanismos que possibilitam a criação de significados para a arte de ser ator, de ser artista. Alguns apontam a disciplina como primeiro pilar para o desenvolvimento de qualquer trabalho. Diria eu, que ser disciplinado é o primeiro passo, porém ter a cabeça voltada para o inusitado é o outro. Explico melhor. Estava eu lá na calçada e de repente surge um grito "Olha eu passando". Era um artista de rua, um mixto de acrobata e contorcionista. Com um pé na cabeça, ele chamou a atenção de todos para começar seu show. Sacou de sua mala um aro de bicicleta sem pneu, com pregos no lugar dos raios, na tentativa de impressionar a todos pois iria executar seu número mais perigoso. O "Salto na Roda". Com um furor e uma forte presença de espirito, ele conquistou a todos, ao ponto de usar os passantes em seus números, para criar efeitos sonoros. O encanto estava presente no corpo do artista e dos que o assitiam... um texto entre eles circulava. Um entendimento que não precisava de palavras ou explicações, todos se divertiam e participavam ativiamente daquela innusitada intervenção. E o que este acontecimento tem haver com meu ofício? O segredo está no risco. Aquela pessoa que não sei o nome, propos-se estar em instante de comunhão com  o espaço, o tempo e as ações. Ele ignorou todos os protocolos ao romper o cotidiano da cidade, levando os que o assistiam a perceber, ou simplismente vivenciar um outro estado de presença particular. Poucos minutos depois, minha dor de cabeça havia passado, não por cura divina, mas por um deslocar-se ativo de minhas sensações. Aquele momento, com aquele artista sem nome, me deixou cheio de certezas sobre o meu fazer: não negar o que o instante pode nos reservar no ato da apresentação, no tempo presente que não esconde nada: suor, ansiedade, medo, sorriso... Ser artista é estar entre o risco de opinar, de fazer e de viver diferente.