Encenações

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Ser artista é extraordinário, ou, o dia que invadiram as ruas do Barracão.

Invadir as ruas para que delas surjam os estímulos para a construção de cenas. Foi este o meu impulso quando propus ao Bololô, o workshop: O gozo de criar. O texto que vocês terão a oportunidade de ler agora, é um relato das emoções provocadas pela vivência de conhecer o ambiente que rodeia o Barracão dos Clowns, escrito pela atriz Paulinha Medeiros.

"Iniciamos o trabalho com dois momentos de contemplação.
O primeiro, feito individualmente em um horário qualquer do dia – no meu caso, no final da tarde, em um espaço próximo ao DEART -, em que contemplamos o verde. Eu contemplei o verde. Simplesmente contemplei o verde e, sem querer, olhei de azul pra um galho encostado numa árvore e vi ali um lagarto se banhando de arrebol. Latejei! Queria tanto compartilhar aquela iluminura viva à minha frente que peguei minha máquina de parar o tempo e fiz uma fotografia. Eu poderia ter pegado o galho para mostrar aos meus parceiros de trabalho, mas perderia toda a encantação. Ele deixaria de ser lagarto e cessaria o seu banho de arrebol. Preferi deixá-lo lá, levá-lo na memória, na fotografia, e ter a possibilidade de voltar para visitá-lo sempre que eu quiser.
O segundo momento de contemplação foi coletivo. Alex nos convidou a sentar em um banquinho na lateral do Barracão para olharmos o céu. Simplesmente contemplarmos o azul escuro e luminoso daquela noite de vento bom. Contemplamos o céu, conversamos com as estrelas e até discutimos sobre suas cores, sobre a rotação da terra e rimos gostoso. Dentro de pouco tempo. Tempo suficiente.
Quando o despertador tocou, recebemos uma carta. Um convite a um jogo. Um jogo curioso pra quatro adultos. Menos pra nós, que somos artistas. O jogo propunha que na primeira etapa, caminhássemos até a porta do Barracão, esperássemos os outros chegarem, nos olhássemos e no momento exato – que só nós saberíamos – correríamos para a rua. Olhando o chão como quem olha um tesouro. Como quem quer encher os bolsos, a blusa, as mãos, todos as partes do corpo de pedrinhas preciosas para levar pra casa. E assim fizemos. Olhamos o chão de Nova Descoberta de azul, durante 20 minutos. Quando ouvíssemos “BOLOLÔ” era o momento de voltar.
Me senti com uns cinco anos de idade. Despudorada. Meti a mão em tudo: mato, água de chuva, metais enferrujados, objetos próximos ao cocô de algum quadrúpede, e eu só sentia gozo e liberdade em fazer isso. Engolindo todas as regras de etiqueta e higiene com minha sede de criar. Logo percebi que a minha blusa era bastante folgada e fiz dela uma “bolsa de canguru”. Por fim, encontrei umas crianças que me ajudaram a olhar de azul e um deles até carregou um grande pedaço de madeira pra mim. Me senti parceira daqueles meninos. Parceira de juventude, brincadeira, saúde e afeto. Quando ouvi “BOLOLÔ” o menino e eu já estávamos a caminho e começou a serenar. Depositei o resto do meu tesouro num montinho que fiz no Barracão e recebi uma segunda carta.
Nela, outro convite. Dessa vez, a construir o máximo de coisas que a gente conseguisse com todos aqueles desobjetos. Em roda, nos olhamos e começamos juntos, mais uma vez – a carta também propunha isso.
Esse momento foi muito, muito bom. Construi coisinhas miudinhas que muito me agradaram: uma casa a partir de pedaços de azulejos e uma placa macia cor de rosa em formato de telhado – já o encontrei assim. Uma boneca a partir de uma garrafa, uma conta telefônica da OI, uma quenga de coco seco e um pouco de vegetação escura e verde. Uma gangorra a partir de uma pedra, duas tampinhas de garrafa de refrigerante e uma casca que guardava sementes. Um escorrego a partir de pedacinhos de azulejo, um retângulo de papelão e uma tampinha de garrafa. Uma árvore a partir de uma garrafa de água e alguns galhos. Um cata-vento a partir de um estranho objeto de metal com arame e uma mini élice. Um galã a partir de um pedaço de madeira, um selim de bicicleta, um papel de picolé e um pedacinho de lixa verde. Enfim, dei asas a imaginação, fui menina, inventora, artista e criei como há muito não me permitia.
Recebemos, então, uma terceira carta que nos dava duas opções: jogar com todos aqueles objetos e perceber o que poderia virar cena ou abandonar o jogo e partir para a avaliação. É claro que jogamos.
Eu não consegui utilizar muito as coisas que criei porque eram muito pequeninas e já constituíam uma narrativa onde estavam, no chão, organizadas, que nem o lagarto que vi perto da árvore. Lembrei que quando era criança eu passava horas arrumando a casinha da boneca, por exemplo, e na hora de brincar eu enjoava. Aconteceu um pouco isso. O momento de construir supriu o meu desejo de explorar aqueles objetos. Então, parti para o jogo com outros objetos e com os meus amigos. Fomos crianças! Brincamos de “gato mia”, criamos figurinos, dormimos no chão sujo, nos cortamos sem perceber, brincamos de monstro e deu um medão de verdade, contamos histórias horripilantes de fantasmas, ouvimos e dançamos “Quem quer pão” da Xuxa, varremos o chão com galhos, inventamos máscara de elefante a partir da folha de uma bananeira, montamos uma centopeia gigante com nossos corpos, fizemos de uma tampa de panela um escudo, um salto alto a partir de uma taça quebrada, um alisador de pés a partir de um papelão em cima de um colchão...
Por fim, assistimos a um vídeo de um espetáculo que tem tudo a ver com o nosso universo de desutilidades.
Foi um dia de trabalho muito, muito precioso. Me despertou coisas que eu nunca imaginei que fosse vivenciar fazendo teatro e olha que isso é muito difícil."
Paulinha Medeiros.