"Iniciamos
o trabalho com dois momentos de contemplação.
O
primeiro, feito individualmente em um horário qualquer do dia – no meu caso, no
final da tarde, em um espaço próximo ao DEART -, em que contemplamos o verde.
Eu contemplei o verde. Simplesmente contemplei o verde e, sem querer, olhei de
azul pra um galho encostado numa árvore e vi ali um lagarto se banhando de
arrebol. Latejei! Queria tanto compartilhar aquela iluminura viva à minha
frente que peguei minha máquina de parar o tempo e fiz uma fotografia. Eu
poderia ter pegado o galho para mostrar aos meus parceiros de trabalho, mas
perderia toda a encantação. Ele deixaria de ser lagarto e cessaria o seu banho
de arrebol. Preferi deixá-lo lá, levá-lo na memória, na fotografia, e ter a
possibilidade de voltar para visitá-lo sempre que eu quiser.
O
segundo momento de contemplação foi coletivo. Alex nos convidou a sentar em um
banquinho na lateral do Barracão para olharmos o céu. Simplesmente
contemplarmos o azul escuro e luminoso daquela noite de vento bom. Contemplamos
o céu, conversamos com as estrelas e até discutimos sobre suas cores, sobre a
rotação da terra e rimos gostoso. Dentro de pouco tempo. Tempo suficiente.
Quando
o despertador tocou, recebemos uma carta. Um convite a um jogo. Um jogo curioso
pra quatro adultos. Menos pra nós, que somos artistas. O jogo propunha que na
primeira etapa, caminhássemos até a porta do Barracão, esperássemos os outros
chegarem, nos olhássemos e no momento exato – que só nós saberíamos –
correríamos para a rua. Olhando o chão como quem olha um tesouro. Como quem
quer encher os bolsos, a blusa, as mãos, todos as partes do corpo de pedrinhas
preciosas para levar pra casa. E assim fizemos. Olhamos o chão de Nova
Descoberta de azul, durante 20 minutos. Quando ouvíssemos “BOLOLÔ” era o
momento de voltar.
Me
senti com uns cinco anos de idade. Despudorada. Meti a mão em tudo: mato, água
de chuva, metais enferrujados, objetos próximos ao cocô de algum quadrúpede, e
eu só sentia gozo e liberdade em fazer isso. Engolindo todas as regras de
etiqueta e higiene com minha sede de criar. Logo percebi que a minha blusa era
bastante folgada e fiz dela uma “bolsa de canguru”. Por fim, encontrei umas
crianças que me ajudaram a olhar de azul e um deles até carregou um grande
pedaço de madeira pra mim. Me senti parceira daqueles meninos. Parceira de
juventude, brincadeira, saúde e afeto. Quando ouvi “BOLOLÔ” o menino e eu já
estávamos a caminho e começou a serenar. Depositei o resto do meu tesouro num
montinho que fiz no Barracão e recebi uma segunda carta.
Nela,
outro convite. Dessa vez, a construir o máximo de coisas que a gente
conseguisse com todos aqueles desobjetos. Em roda, nos olhamos e começamos
juntos, mais uma vez – a carta também propunha isso.
Esse
momento foi muito, muito bom. Construi coisinhas miudinhas que muito me
agradaram: uma casa a partir de pedaços de azulejos e uma placa macia cor de
rosa em formato de telhado – já o encontrei assim. Uma boneca a partir de uma garrafa,
uma conta telefônica da OI, uma quenga de coco seco e um
pouco de vegetação escura e verde. Uma gangorra a partir de uma pedra, duas
tampinhas de garrafa de refrigerante e uma casca que guardava sementes. Um
escorrego a partir de pedacinhos de azulejo, um retângulo de papelão e uma
tampinha de garrafa. Uma árvore a partir de uma garrafa de água e alguns
galhos. Um cata-vento a partir de um estranho objeto de metal com arame e uma
mini élice. Um galã a partir de um pedaço de madeira, um selim de bicicleta, um
papel de picolé e um pedacinho de lixa verde. Enfim, dei asas a imaginação, fui
menina, inventora, artista e criei como há muito não me permitia.
Recebemos,
então, uma terceira carta que nos dava duas opções: jogar com todos aqueles
objetos e perceber o que poderia virar cena ou abandonar o jogo e partir para a
avaliação. É claro que jogamos.
Eu
não consegui utilizar muito as coisas que criei porque eram muito pequeninas e
já constituíam uma narrativa onde estavam, no chão, organizadas, que nem o
lagarto que vi perto da árvore. Lembrei que quando era criança eu passava horas
arrumando a casinha da boneca, por exemplo, e na hora de brincar eu enjoava.
Aconteceu um pouco isso. O momento de construir supriu o meu desejo de explorar
aqueles objetos. Então, parti para o jogo com outros objetos e com os meus
amigos. Fomos crianças! Brincamos de “gato mia”, criamos figurinos, dormimos no
chão sujo, nos cortamos sem perceber, brincamos de monstro e deu um medão de
verdade, contamos histórias horripilantes de fantasmas, ouvimos e dançamos
“Quem quer pão” da Xuxa, varremos o chão com galhos, inventamos máscara de
elefante a partir da folha de uma bananeira, montamos uma centopeia gigante com
nossos corpos, fizemos de uma tampa de panela um escudo, um salto alto a partir
de uma taça quebrada, um alisador de pés a partir de um papelão em cima de um
colchão...
Por
fim, assistimos a um vídeo de um espetáculo que tem tudo a ver com o nosso
universo de desutilidades.
Foi
um dia de trabalho muito, muito precioso. Me despertou coisas que eu nunca
imaginei que fosse vivenciar fazendo teatro e olha que isso é muito difícil."
Paulinha Medeiros.
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