Encenações

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Ensolarada Capital do desrespeito.

Como lidar com a individualidade dentro de contextos coletivos? Nossa parece mais um trava língua. E é para ser mesmo, pois muitos andam de língua travada com os acontecimentos recentes ligados aos grupos de teatro da ensolarada capital potiguar. Grupos como o La Trupe, Tropa Trupe, Clowns, Atores à Deriva e claro Facetas, do qual faço parte. Destaco estes por ambos terem características parecidas: desejo de um trabalho artístico continuado pautado em princípios coletivos que seja subsidiado por políticas públicas.
Pois bem, estes citados têm resistido cada um sua maneira a selvageria que é sobreviver de teatro. O ano está se acabando e a pouco o que se comemorar se pensarmos em ações consistentes para a garantia de trabalho digno na nossa capital. Se não fosse os editais federais e privados alguns desses grupos estariam fadados a míngua de suas bilheterias e projetos alternativos.
O que tudo isso tem a ver com a tal coletividade? Muito. Se utilizarmos a soma de valores políticos e ideológicos de cada grupo detém, aliado a construção de ações mais ousadas, como manifestos e cartas abertas a imprensa poderemos enfim tornar realidade o desejo coletivo de produzir arte dignamente na capital ensolarada.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Líquido Espelho

Certa manhã ao acordar, havia em mim um ser que até então não conhecera. Em minha nova concepção enxerguei muitas formas, tentei desesperadamente entender o movimento de cores formado em meu pensamento. Sensações indecifráveis... Inútil! Um frio se instaurou. Abri meus olhos e percebi que algo estava diferente, o teto não era mais o mesmo, as paredes sumiram. Escutei um barulho ensurdecedor. Olhei para o lado e vi um lance de pedras vindo em minha direção. Apesar do medo, fiquei estático... No mundo das pedras, atraente é estar imóvel! Elas passaram violentamente do meu lado, fechei os olhos para me defender. O ruído forte das pedras rolando me angustiava. Vã defesa. O frio aumentou. Até que minha inércia se consolida e um silêncio repentino atestou: naquela manhã de chuva, tornei-me pedra! Tornei-me um ser diferente na paisagem.
A chuva aumentava de volume e eu a recebia sem a absorver. Á água apenas escorria sobre minha superfície. O chão encharcado intensificava meu frio. Engraçado ser uma pedra que sente. Mesmo assim algo me cercava, era diferente da chuva, ela não passava por mim apenas. Era outro ser. Um ser rasteiro. Era frio como eu. Descobri que em meio à chuva um musgo verde que se alimenta de frio estava a lentamente me cobrindo. Suas raízes eram delicadas. No momento, me era confortável ser imóvel, não solitário. Em meio à chuva senti-me seduzido, arrebatado. Tentei encontrar subterfúgios para negar o que estava sentindo... Seres imóveis precisam de mentiras momentâneas! A chuva aumenta e meu desejo de negar o musgo também. Decido olhar incessantemente para o teto, vã tentativa, não é mais um teto, é um céu escuro de chuva. Passei a perceber que cada gota antes de cair sobre mim, se tornava meu espelho. Encantou-me a ideia de ter muitos espelhos. Os encantamentos podem ser perigosos. Para meu sofrer, me enxerguei em pedaços verdes. Eram fragmentos do que estava sentindo. Desejei chorar. Descobri, após aquela manhã, que pedras sentem dor, porém, não exteriorizam. Lágrimas não escorrem de pedras. A chuva passou e com ela todo o encantamento de um dia ter me enxergado de um modo diferente... Quebrado.

Sacolejada Teatral

Por Chico Guedes
No encerramento da temporada d’O Bizarro Sonho de Steven este sábado à noite no Galpão 29, na Rua Chile, o Grupo de Teatro Facetas, Mutretas e Outras Histórias provou mais uma vez que faz o teatro mais inteligente, instigante e provocador de Natal no momento.

A peça dessa espertíssima moçada do Conjunto Pirangi foi montada com a verba do prêmio Myriam Muniz − uma história que envolve MinC-FUNARTE e Petrobrás − e desde a estréia um mês atrás no espaço que eles ocupam no na Coeduc, em Neópolis, já se apresentou também na Associação Cultural do Bom Pastor, no Centro de Formação e Pesquisa Teatral, no Tirol, e na Escola de Teatro Carlos Nereu, na Zona Norte.

O Bizarro Sonho de Steven é o primeiro fruto maduro do Facetas e Mutretas desde que Enio Cavalcanti, Rodrigo Bico, Alex Cordeiro e a professora Monique Oliveira decidiram em 2006 transformar em companhia profissional um grupo de teatro nascido numa escola estadual de Neópolis em 1999.

Trabalhando a partir de um texto de Eduardo Vinicius, formado em Letras pela UFRN, o Facetas criou um espetáculo que explode as expectativas de platéias formadas na experiência convencional de teatro. Não há cadeiras e o público é levado a se mover de acordo com os acontecimentos. O uso surpreendente da luz, som e câmeras de TV ajuda a criar o ambiente onde os personagens borram de maneira às vezes cômica e quase sempre perturbadora a linha entre a violência pop dos cartoons e dos filmes juvenis de porrada e a crueldade real a que são submetidos os mais fracos, os “perdedores” do darwinismo social que impera no mundo.

Pros que conhecem teatro de vanguarda no Brasil e pelo mundo afora muitas referências serão reconhecíveis. Em comum com outras experiências parecidas há o claro intuito de sacolejar estética e moralmente a nossa passividade e/ou cinismo de espectadores.

Uma observação: pela natureza e exigências espaciais da peça, seu impacto depende da relação entre o espaço e o número de pessoas. Nesse sentido as apresentações no Coeduc, no Bom Pastor e no Galpão 29 ontem à noite foram ideais, enquanto o segundo dia no CFPT, no Tirol, por exemplo, o público excessivo teve a visão e o acompanhamento do espetáculo muito prejudicados. Torço para que a peça volte ao cartaz, e sempre em espaços adequados.

E é bom ficar de olho nessa moçada!